sexta-feira, 9 de maio de 2014

DISCURSO DE BRUXA



  HERDEIRA DAS PRETAS VELHAS DE OMOLU E OXALÁ

Eu sou uma das guerreiras do exército de Dona Iansã, nada de preguiça, nada de acomodação, muita agilidade, muito resolver e organizar, minha autoridade é oriunda do pai celeste, do pai espiritual, Olorum, espírito cósmico, que domina os elementos, a matéria e a anti-matéria.
Eu sou mãe, sou ultra-mãe, herdei o sangue das matronas índias e africanas.  
Sou descendente dos heróis africanos aprisionados e mortos por causa da escravidão, meus ancestrais são xamãs e feiticeiras poderosas vindas da Mãe África, sou herdeira do curandeirismo das pretas velhas de Omulu e de Oxalá, da farmacopéia indígena dos tupi-guarani, dos Tupiniquim, dos Pataxó Hã-Hã-Hãe, sou cabocla, sou da mata, sou da selva,.
Eu sou o mico-leão da cara dourada, sou o saguí, a anta, o jacaré, a onça pintada. Eu sou o tamanduá-bandeira, sou a gelada e transparente água do rio nascente, o colibri é meu irmão e eu sou a mãe da arara, o pai do jabuti, irmã do periquito e do papagaio, prima do orangotango,,, 
Eu sou o espírito da caipora que vaga mata adentro assustando quem vem para matar, eu sou o espírito noturno da boitatá, que põe fogo na bunda de latifundiário e madeireiro, que arranca e queima árvore; eu sou a folha que cai e a raiz que penetra na terra buscando alimento para sua planta, eu sou a enchente, o furacão, o deus-nos-acuda da tempestade, eu sou a própria tempestade, eu sou a lua e o sol, a onda do mar, cada gota de chuva que molha a terra umedecendo-a para a plantação, eu sou o sertão da Bahia, o cactus, a terra vermelha e rachada da caatinga.
Sou Lampião e Maria Bonita, sou o fim do Apartheid e da segregação, sou Mandella, Biko, o Che.  Tudo que representar transgressão, isso sou eu.
Eva continua sendo expulsa do paraíso e culpada do pecado de toda a humanidade.  Como Joumana Haddad, eu também matei Sherazade. E não sou culpada do pecado de ninguém!
Eu sou a flor do maracujá, eu tenho sede de justiça, eu sou o elemento fogo e ardo em brasa, o elemento ar e sobrevôo em espírito as cachoeiras e desço em queda livre pelos penhascos.
Eu pouso nos dedos do Cristo redentor ,minhas lágrimas lavam o sangue que mancha o chão do carandiru.  Já nem existe mais o Carandiru!  A República deseja que esqueçamos o massacre.  Já nem existe mais o povoado de Canudos!  O Estado deseja que esqueçamos o genocídio perpetrado pelo poder contra o povo do sertão nordestino.
Eu choro por Canudos, tomo a bênção de João Cândido e me espelho no grande Zumbi de Palmares. 
Eu sou natureza, céu e mar, cada estrela que fica na areia da praia, cada palmeira do coqueiro que balança nos ventos de Caymi, eu sou a água de côco, doce feito mel, mas sou também o gosto do jiló. 
Meus antepassados caçavam livres pela praia e pescavam sem barco e sem anzol, apenas com uma lança certeira e veloz , meus ancestrais dormiam na mata e ouviam à distância aproximando o ouvido da terra... 
Ah, quantas de nós fomos queimadas como bruxas malditas e satânicas, queimadas vivas pelos "justiceiros", mortas em praça pública pela turba enlouquecida.  Ainda se queima mulheres, ainda se vende mulheres, ainda se escraviza mulheres no século XXI. Quem eram os satanistas?  Os que morriam ou os que matavam? Quem eram os pecadores? as que eram sequestradas e vendidas como escravas ou os sequestradores?  As que eram arrastadas ruas afora pelo braços e cabelos ou os que as arrastavam?
Eu sou o que está além das palavras, o que não está escrito, o que se lê nas entrelinhas... eu sou espada e flor, eu sou um antúrio, um copo de leite, uma rosa vermelha, a iguana, a cobra coral, a fêmea do guaiamum... eu sou pátria Brasil Mulher e ainda sonho ter meu pedaço de terra pra plantar novamente a minha subsistência e viver com a DIGNIDADE QUE TODO E QUALQUER SER HUMANO MERECE TER PARA VIVER.

A violência contra a mulher é uma das formas mais cruéis de atentado aos direitos humanos